No imaginativo jogo proposto por Caetano, lanço como exemplos gigantescos de artistas intensamente vinculados à infância os Beatles, mais especificamente John Lennon e Paul McCartney, e Chico Buarque de Hollanda. Canções como “The Fool on the Hill”, “Maninha”, “Strawberry Fields Forever”, “João e Maria”, a versão dos Saltimbancos, “Penny Lane”… são tantas e tantas criações arquetípicas, fabulosas! Tem coisa que parece música de criança mesmo. Lembro do Caetano dizendo que “A Banda” parecia “obra de um moleque”, se comparada a “obras primas” como “Pedro Pedreiro” e “Sonho de um Carnaval”. Compreendo-o perfeitamente, mas bem lá dentro sinto-me incapaz de conceber tal antítese. “A Banda” é coisa de moleque mesmo. Até a Clarice Lispector achava isso, mas sob outros pontos de vista e ouvido.
Agora, que essa questão das idades artísticas dá um pano pra manga, dá. Chico, John e Paul fizeram essas canções na juventude e maturidade. E aos 16 anos Paul McCartney martelando o velho piano de sua casa paterna cantarolou a melodia de “When I’m Sixty Four”, que o Paul disse tratar-se de uma música inspirada pelo medo da velhice. E o romântico Tchaikowsky escreveu, aos seis anos, em francês, um poema intitulado “A Velhice de um homem que fala sonhando na idade de 60 anos”. Essa dança de idades no tempo nos remete fortemente a Jorge Luis Borges, o bruxo Borges, cujo conto “O Imortal”, pode ter sido uma das fontes de inspiração da bela “O Homem Velho”, de Caetano, que homenageava Chico que, então pelos 40, já havia feito “O Velho” aos 20 anos, e… um amigo da Net disse que “Penny Lane” também era sobre o medo da velhice.
As analogias entre Chico e Paul vão longe, e em aspectos que podem passar despercebidos. São dois dos maiores melodistas e letristas da canção, em todos os tempos. Chico, dono de uma erudição considerável, em instante algum permite que esta turve sua obra, cristalina, concisa, sem adereços desnecessários, efeitos que ressaltem da poética ou da música em detrimento da composição no todo. Paul, sempre distante de qualquer intelectualidade, fez de sua imaginação prodigiosa uma aliada implacável, que dá a muitas de suas composições um teor criativo inapreensível por qualquer análise estruturalista grosseira, dessas que infelizmente primam em nossa crítica. “Yesterday” é um exemplo disso.
A contracultura serviu a Paul, como a terrível ditadura militar a Chico. Ambos extremamente ligados a tudo o que acontecia na época, foram afetados de muitas maneiras, porém, o que de fato imortaliza esses trabalhos é a dimensão mitológica a que foram alçados pelos seus contextos políticos, econômicos, culturais. Com todos os ecos políticos ainda ouvidos em “Construção”, ela mais me parece hoje um dos Cantos do Inferno que Dante Alighieri não escreveu. “Apesar de Você” é, sem dúvida, um hino de resistência perene, por tratar da revolução eterna, de um ponto de mutação desde sempre inevitável. Os exemplos se estenderiam ad infinitum, e sempre na temática do tempo. Lembro de “Valsa Brasileira”, letra de Chico para música de Edu Lobo, onde novamente somos reportados a Borges, pela densidade, síntese e discrição metalingüística quase absoluta: ...e pela porta de trás/ da casa vazia/ eu ingressaria/ e te veria/ confusa por me ver/ chegando assim mil dias antes de te conhecer. E o poeta chega à sua musa, que é também a valsa brasileira, revisitada pelos versos do seu imenso dom de sonhar.
Na pré-adolescência, quando comecei a fazer música, tinha sonhos com os Beatles. Num deles, o quarteto aparecia de terninho numa arena de Tokyo, trocando palmadinhas e cantando “A Noite dos Mascarados” do Chico. Em japonês. Num outro sonho (este, recorrente) eu estava sempre numa loja labiríntica à procura de um disco dos Beatles que nunca existiu. Os elementos oníricos obviamente variavam bastante, mas sempre acabava por encontrar um LP, e na capa eu via os quatro numa praia. Começava por ouvir o mar, depois um som tipicamente beatle que ia se desdobrando em sonoridades próximas a sons que eu comporia anos depois.
Sonhos com músicas novas misteriosamente ocultas dentro de um disco clássico onírico, talvez um arquétipo paralelo àquele de “O Imortal”, onde Borges passa a relatar um manuscrito escondido pelo protagonista no último tomo da Ilíada, de Pope. Sonhos, sonhos são… como diria o Chico. E para terminar relato um pequeno sonho musical, que originou uma versão da música. Ainda a estou fazendo. O sonho:
In Penny Lane there’s a barber showing photographs. Agora os vejo: Borges, Milton Nascimento, João Cabral, Gil, Shakespeare. Agora ele me mostra as fotos de toda cabeça que teve o prazer de conhecer: Magritte, Breton, Caymmi, Augusto de Campos, Caetano. Todos estiveram lá. E passaram na barbearia. Todos! E mantiveram segredo. O que haveria de tão inconfessável nessa rua musical da Infância? Agora os vejo: Ezra Pound, Drummond, Klimt, Pessoa. Um som. E olha lá, os ilustres fotografados saindo numa enorme banda. Com Pixinguinha, Webern, Cartola, Debussy, Chico. Dobram a curva e somem. Cantando coisas de amor.
Um comentário:
concordo.
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